Escrito por F. Boehl e Phelipe Cruz




::Arquivo


Rio de Janeiro, Brasil



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Cecília e Mariana se conheceram no trabalho. Eram diferentes em temperamento, mas logo se tornaram amigas. Talvez pelo fato de serem gordinhas num mundo de secretárias-executivas-saradas. Sempre almoçavam juntas e tentavam fazer dietas juntas. Cecília, mais velha e autoritária, controlava:
- Mariana, olha só a quantidade de molho que você pôs na salada! Isso engorda!
- Ah, Ciça, comer só alface não tem graça...

Mariana nem era tão gorda quanto à amiga. Nem precisava fazer dieta. Era casada, ao contrário da outra que aos 28 anos ainda não sabia o que era um namorado. Ficava contando calorias mais pela companhia. Tratava a dieta como um hobby. Cecília não. Levava a coisa a sério. Queria perder peso a todo o custo. Queria usar manequim 34. Queria que os pedreiros mexessem com ela quando passasse. Queria ser feliz.

Doutor Maciel, vice-presidente, adorava brincar com a mania das meninas. Almoçava com as duas e colocava batata-frita nos pratos delas. As duas sorriam amarelo e assim que ele olhava para o lado, franziam o nariz uma para a outra.

O chefe havia avisado que na sexta seria seu aniversário. Daria uma festa no escritório com bastante bolo, refrigerante, sorvete e afins. Queria saber como as duas iriam fazer.
- Nunca! Ficaremos na dieta - Cecília gritou.
- Que isso, Ciça? Eu vou comer nem que seja um pouquinho. Que desfeita...
Cecília não acreditou no que ouviu. Arregalou os olhos. Maciel abraçou as duas: "É isso aí, minhas meninas".

No dia do aniversário, a espera pela festa era grande. Quando chegou a hora, Cecília vagava pelas salas do escritório tentando evitar o burburinho. Chegou a flagrar Carminha dando uns beijos em Fernando no corredor. Viu a nova roupa de Sandra, que marcava todo o seu novo corpo escultural. Até os gays do RH, sempre comedidos, davam uns amassos na escada. Mariana contava a todos que o marido tinha tatuado seu nome no bíceps. O clima de felicidade enojava Cecília. Todos riam e brincavam. Menos ela. Todos eram magros e felizes. Menos ela. Todos tinham seus pares, até a Mariana. Menos ela. Chorando, trancou-se no banheiro. Na hora dos parabéns, saiu correndo pelada e se jogou em cima do bolo. Arrancava pedaços enormes de torta e os esfregava na vagina, aos gritos:
- Comam! Comam tudo!
No dia seguinte, Mariana almoçou com a Sandra e a Carminha. Cecília pediu um Big Mac pelo telefone para comer sozinha no escritório.
- Posso trocar minha batata frita pela salada?
- Pode! No McDonalds quem faz a oferta é você!


 
A águia e as galinhas

Uma vez, um sacerdote católico encontro um filhote da águia caído no chão. Como bom samaritano, recolheu o bichinho, ainda incapaz de voar, e o levou para casa. Sabendo da incompetência dos padres em gerenciar uma família, deixou a aguiazinha aos cuidados das galinhas que mantinha. Assim a águia cresceu sem saber de sua ascendência nobre. Pensava ser também uma galinha.
Um dia, depois de ser expulso da Igreja Católica, o agora ex-padre voltou ao galinheiro e encontrou aquela bela ave em meio a galinhas ciscando a terra e brigando por um punhado de milho. Chocado com a cena, puxou a águia para um canto e falou, cheio de culpa:
- Escuta, tu és uma águia. Foste feita para planar no azul sem fim dos céus. Esta existência limitada a terra é degradante. Vem comigo, vem conquistar o lugar que é teu por direito.
Levou a águia para a beira de um penhasco e usando muita persuasão a convenceu que era capaz de voar.
A águia, com lágrimas nos olhos, murmurou "muito obrigada, seu Leonardo" e se jogou no vazio do espaço. Não deu nem para bater as asas duas vezes, caiu como uma pedra e se espatifou no chão.
Foi servida com farofa no almoço de domingo, ao som da Dança da Manivela.


 
Jussara era ciclotímica. Era o que ela dizia, nas poucas vezes que se via obrigada a se desculpar por sua eterna inconstância de humor. Os que a conheciam preferiam a chamar por outros nomes como destemperada, psicótica ou menstruada. A garota usava o humor como arma. Quando estava bem, ria alto e dava balas de mel para todo mundo. Quando estava mal, chegava tarde, resmungava um bom dia e passava a gritar ordens absurdas o dia todo. A garota era gerente de conteúdo de um web site. Batalhou muito para conseguir aquela posição. Só deus sabe quantas balas de mel deu para seus chefes para chegar até ali. Não podia se dar ao luxo de falhar. Era niteroiense e isso a cobria de vergonha. Ter um emprego que pagava bem e uma posição de chefia era uma espécie de antídoto para o seu passado. Suas ordens absurdas e sua exigência no cumprimento destas eram bem vistas por seus superiores. O mau humor a ajudava. Os funcionários obviamente não viam a coisa do mesmo jeito. Não entendiam como aquela mulherzinha destemperada conseguiu chegar onde chegou. Ficavam inventando apelidos para a chefa e acabavam esquecendo os destemperos.

O site começou a passar por dificuldades financeiras e muita gente começou a ser mandada embora. A equipe de Jussara agora se resumia a ela e Clara, sua assistente. Clara não havia sido mandada embora porque era estagiária e competente. Por um terço do salário, fazia tudo que seus ex-colegas faziam. Sem ninguém mais para aporrinhar, Jussara acabou concentrando todos os efeitos de suas flutuações de humor na estagiária. No começo, Clara ainda guardava as balas de mel na gaveta, dizendo que ia comer mais tarde, que recém tinha escovado os dentes ou que estava de dieta. Nunca dizia a verdade. Odiava balas de mel. Nos dias de mau-humor de sua chefe, respirava fundo e acatava as ordens com resignada paciência. Um dia, Jussara veio com uma pilha de papéis recém impressos:
- Clara, eu já não disse para usar corpo 11 para digitação dos meus relatórios? Corpo 12 gasta mais papel. Vai, imprime isso tudo de novo!
Clara arregalou os olhos e tentou contra-argumentar:
- Mas se eu imprimir de novo, vou gastar mais papel ainda.
- Escuta aqui ô, garotinha. Não tenta discutir não. Quem você pensa que é? Fez merda e agora vai consertar.
A estagiária não falou nada. Jogou Jussara pela janela e a chefe despencou 11 andares, caindo morta sobre as bancas de camelôs da avenida Rio Branco.
Quando a polícia a interrogou, Clara se justificou:
- Eu sou ciclotímica.


 
Camila e Fernando se casaram dois meses depois que se conheceram. Ninguém entendeu muito bem o que ela tinha visto no cara. Ele era esquisito, usava umas roupas estranhas e tinha cheiro de mofo. As tias fofoqueiras diziam que era dinheiro, mas a verdade é que a tímida web designer se apaixonou pelo rapaz à primeira vista . E vice-versa. Em um ano de casados, a paixão já havia arrefecido. Pelo menos, pelo lado de Fernando. Ele já não tinha tesão na esposa. Ficavam os dois vendo MTV e toda a vez que a Fernanda Lima aparecia Fernando coçava o pau e dizia:

- Isso que é mulher, não é a porcaria que eu tenho lá em casa.

Olhava para a esposa ao lado e ria como se tivesse feito uma piada. Camila não falava nada. Pegava o controle remoto e mudava para o Superbonita, na GNT. O marido protestava e saía da sala resmungando. Camila ficava na sala chorando e assistindo aos conselhos de como deixar as tetas com uma aparência maior.

Fernando a traía constantemente. Com qualquer coisa que aparecesse. Sempre justificava: "Camila não é o suficiente pra mim. Eu preciso de muito sexo, cara." Fernando era DJ. Trabalhava de noite. O resto do dia era gasto vendo TV, malhando ou comendo cus e bocetas. Camila não sabia da última parte. Ou fingia que não sabia. Volta e meia, encontrava uma cueca nova, misturada aos lençóis sempre úmidos de suor. Fernando dizia que suava muito quando dormia a tarde. Ela fazia que acreditava, fazia uma cara feia e trocava de canal de novo.

Um dia, Camila chegou mais cedo em casa. Fernando estava na academia. Achou uma calcinha marrom entre os lençóis encharcados de suor. Sabia que a calcinha não era dela: "Porra, eu sou web designer! Jamais usaria uma calcinha marrom!" Foi o que disse à sua mãe pelo celular, enquanto chorava vagando pela casa. Quando sua mãe começou a falar que tinha avisado sobre esse rapaz, Camila desligou com raiva. Ela já não sabia o que sentia. Ódio por Fernando, raiva de si mesma. Pena de si mesma, pena do marido idiota que pensa com a cabeça do pau. Tristeza, amargura, resignação. Um carnaval de sentimentos ruins sambava em sua cabeça. Ela olhou para a banheira e imaginou seu corpo estendido na água morna enquanto seu sangue coloria tudo de vermelho. Lembrou-se que o filho da puta do marido não havia mandado consertar o aquecedor.
Não seria isso que a impediria. Estava cansada de ter a vida controlada pelos erros do marido. Não seria mais uma vítima. Foi até a cozinha, encheu várias panelas de água e pôs para ferver.

- Ah, seu imbecil. Vou fazer você sofrer do mesmo jeito que eu tou sofrendo.

De panela em panela, foi enchendo a banheira. Quando sua última leva estava pronta, Fernando havia voltado da academia, sem que ela percebesse. Camila encontrou o marido estirado na banheira, fumando um baseado. "Aê, Camila, pega aquele meu CD do Pearl Jam?" Camila começou a chorar. Sentou-se à frente da tevê. Daniela Escobar ensinava como fazer seus peitos parecerem maior. Camila já sabia disso.


 
- Que vá todo mundo pro inferno! Especialmente você, Albuquerque!

Foi assim que Claudia se despediu de seu chefe e saiu do trabalho. Era uma sexta-feira, o clima, como usual, era de felicidade e confraternização. O que fez com que todo mundo estranhasse mais ainda aquele ataque aparentemente desnecessário. Claudia pegou o elevador, não deu a boa-noite de sempre ao seu Feliciano e saiu pisando duro e olhando feio pela rua afora. Era capaz de esganar qualquer um que falasse alguma coisa com ela. Não, não estava de TPM. Estava puta mesmo. Nem desviava das pessoas. Deixava que os ombros se chocassem. Chegou a derrubar algumas bolsas e umas duas velhinhas. O celular tocou e em vez de atender, ela o lançou no meio dos carros. Arrancou a presilha que segurava os seus cabelos no alto. Tirou, por dentro da blusa, o sutiã que a amarrava e acelerou o passo. Sabia que tinha que pegar o ônibus para voltar para casa, mas naquele dia faria tudo diferente. Estava revoltada. Ignorou o ponto de ônibus e seguiu adiante. Aquela pequena subversão de seus hábitos lhe trouxe um pouco de felicidade. Cláudia sorriu. O vento contra o seu corpo a fazia mais feliz.

Naquela sexta-feira, tinha trabalhado demais. Estava sem namorado, sem esperanças e cheia de dívidas. A única coisa que tinha, era trabalho. E mais trabalho. No fim da tarde, tinha recebido um e-mail de seu superior, oferecendo uma noite a sós e que depois disso, ela poderia trabalhar menos e ganhar mais. Cláudia ficou revoltada. Sabia que não conseguiria topar aquele acordo. Sentiu-se idiota por não conseguir ser esperta como a Márcia, a Claudete e a Regina, que tinham conseguido os cargos de diretora daquele jeito. Uma chuva começou a cair. Ela foi caminhando até sua casa. Já estava escurecendo, mas Cláudia não se importava. Já não se importava com nada nem com ninguém. Desabotoou a blusa, jogou ela no chão. Ficou só de saia. Tirou a saia. Estava livre, molhada. Era um animal solto pela natureza. Tinha pêlos, vontade, garra, podia fazer o que bem entendesse. Jorge também era assim. Pegou a garota à força e a estuprou. Nem seu chefe ele era.



 
A vida imita a arte: Resgate de celular que caiu na privada mata 3 no Quênia


 
Gabriel, aos 26 anos, ainda era virgem. Namorou Juliana durante três anos. Mas não faziam sexo. Juliana dizia que não ligava para essas coisas. Ele acreditava. Adoravam brincar na cama. Quando surgia alguma tensão sexual, os dois se entreolhavam:

- Vamos comer churros?
- Vamos! Quem chegar por último, paga.

A menina o traía com todos os amigos. Gostava de Gabriel, mas sabia que ele era algo especial e que não podia fazer sexo com ele. Sexo sujaria toda a relação que era tão bonita e pura. Via o namorado como uma espécie de Michael Jackson carioca. Amava o garoto, mas precisava de caras que a pegassem de jeito, que a comessem com força e ainda gozassem em sua boca.

O namoro chegou ao fim quando Gabriel não agüentou mais ouvir de seus amigos sobre como Juliana era gostosa. Digão, seu amigo de infância, adorava contar os detalhes: "Mermão, ela mama direitinho. Agora eu entendo porquê você está com ela. Ainda bem que tu sabe que ela é vagabunda e não se importa em dividir com a gente".

Gabriel sabia que tinha obrigações sexuais com a namorada que cedo ou tarde haveria de cumprir. Pensava nisso o tempo todo, o que estava atrapalhando uma carreira promissora de web designer e trazendo mil complicações. Já tinha pensado em pular do quarto andar, mas não queria estragar o canteiro da Dona Rose, a síndica.

Tinha que dar um jeito na sua situação. Na segunda-feira, ligou para Dr. Góes. Ia tirar o siso.
- Tenho que resolver uma coisa de cada vez. - Foi o que escreveu em seu blog.


 
Verão

- Eu não trouxe sunga, mas a minha cueca é de lycra.
Wilson esticou o elástico da bermuda, mostrando a cueca branca:
- É a mesma coisa só que um pouco mais fina.
Terminou a frase, tirou a bermuda e correu para o mar de Copacabana. Quando voltou do mergulho, Alice já não estava lá. Foi embora para o Rio Comprido. Com a bermuda dele junto.

...

- Vamos no de ar condicionado. É só 20 centavos a mais, André.
- Tá maluca? 20 centavos meu, 20 teu. Em cinco dias isso dá dois reais! A gente pode comprar dois mates com essa grana.
- Até parece, tu nunca compra nada na praia pra mim.
- Claro você gasta toda minha grana com bobagem.
- Mão-de-vaca!
Marlene fez sinal para um táxi.
- Me leva até o Leblon? Eu tô sem grana, mas pago um boquete sem comparação. (Fez um biquinho para o motorista).
- Te fode, baranga. Com essa cara, isso não paga uma volta no quarteirão.
O táxi arrancou deixando Marlene para trás. André foi para Copacabana sozinho em um ônibus com ar condicionado e ainda tomou um mate com o que sobrou do dinheiro.

...

Laís odiava ir com a mãe para a praia. Dona Neuza era uma quarentona que oxigenava os cabelos, conversava com todo mundo e tinha um cavalo-marinho tatuado em uma das tetas. Laís era toda séria e reservada, usava Sundown 50 e escutava Tribalistas.
- Vambora, Laís?
- Porra, mãe! Vai por um maiô. Ninguém precisa ver essa barriga escrota.
- É ruim de eu usar maiô e ficar com marca branca.
- Como se alguém fosse notar. Quer ficar bronzeada para quem? Ninguém te quer.
- Ninguém te quer também.
As duas desceram o elevador sem trocar uma palavra. Dona Neuza olhava o infinito. Laís emburrada olhava o chão.
Quando chegaram na areia, a mãe estendeu a canga e se deitou de costa, soltando a parte de cima do biquíni.
- Por favor, mãe. Pára com isso. Tá praticamente de top less.
- Laís, vai a merda.
Laís foi para beira d'água. Sentou-se no chão, chorando de raiva. Começou a catar tatuís para pôr no castelo de areia que construía. De vez em quando resmungava:
- Tem gente que não tem noção do ridículo mesmo.


 
Todos chamavam Regininha de Poltergeist. Não por causa da gostosa do Fausto Fawcett. E sim por ser um susto, assim como o filme. Era feia. Muito feia. Mas era a melhor amiga da mais bonita da faculdade. Arranjava homens para a gostosa da Cíntia com a sua simpatia e desprendimento. As duas se davam bem. Regininha não tinha inveja da amiga. Cíntia também não. Não a tratava bem só por pena da amiga ser gorda, feia e cheia de espinha. As duas eram amigas de verdade.
A única diferença era que Cíntia ficava com todos os meninos bonitos e Regininha era apaixonada por Matheus. Passava dias e noites pensando nele. Se o garoto pedisse uma caneta emprestada, era motivo de felicidade para a semana inteira. Cíntia brigava com a amiga, dizendo que ela não podia ser muito agradável ou ficar olhando demais pra Matheus. Que tinha que se dar ao respeito. Que era linda, inteligente e merecia alguém melhor.

O feriado de carnaval estava chegando. Todos iriam para Angra. Ficariam na casa de Augusto. Cíntia saltitava de felicidade, louca para ir. Regininha nem um pouco.
- O Matheus vai...Eu não sei se vou agüentar ver ele ficando com outra menina. Não sei se vou agüentar ficar perto dele. Acho melhor ficar por aqui!
- Ah, Rê, vamos comigo. A gente não vai ficar com ninguém. Vamos só nos divertir e olhar os meninos de sunga, de toalha saindo do banho, jogar vôlei, pegar uma cor... Ah vamos...

Regininha foi. De noite, rolou luau na praia. Cíntia bebeu. Ficou com três garotos embaixo da canga. Inclusive Matheus, também bêbado. Calafrios tomaram conta do corpo de Regininha. Dor de barriga também. A decepção misturada com raiva coloriu de vermelho as bochechas da gorda. Regininha se levanta. Vai em direção à fogueira e se joga. Ninguém percebe. Todos continuam se beijando. Na quarta-feira de cinzas, encontram Regininha carbonizada.



 
Fabiana era uma garota porto-alegrense que adorava MPB. Mudara-se para o Rio em busca de uma chance de expor seu talento. Esta era sua chance de brilhar. Queria calar a boca de familiares e colegas preconceituosos. Especialmente a de sua mãe que sempre dizia:
-Fabiana, por que você não pode ser como sua irmã? Você tem que arranjar um namorado, minha filha. Segue aquela dieta que tua irmã faz. Você era tão bonitinha quando era criança...
A garota mostrava o dedo do meio para dona Leda e pegava o T3 para a faculdade. Na faculdade de biblioteconomia, não era diferente. Enquanto ficava cantando e tocando violão no bar, as estudantes de relações públicas apontavam para ela e faziam piadinhas.

- No dia em que fui mais feliz, eu vi um avião...
Cantou esse pedaço da música o tempo todo na viagem para o Rio. Só parou quando o comissário de bordo atendeu às reclamações dos outros passageiros e pediu gentilmente que a garota calasse a boca.
No aeroporto, conheceu Rodrigo, um estudante de teatro vindo de Juiz de Fora. Rolou uma afinidade imediata e ela sugeriu dividir uma quitinete no Leblon. Fabiana sorriu e cantou:
- O inverno no Leblon é quase glacial.
Rodrigo adorou a idéia. Ele tinha delírios de grandeza carioca zona sul e adorava as novelas do Manoel Carlos. Pagavam mil e duzentos de aluguel. O pouco dinheiro que sobrava, era gasto em miojo da Turma da Mônica e Coca Light.

A garota arranjou um emprego de recepcionista num ginecologista em Copacabana. O salário era baixo, mas ela espiava as pacientes pelo circuito interno de TV. Às vezes, gravava e levava a fita para casa para se masturbar. Era muito tímida e não tinha vida social nenhuma. Havia tentado ir algumas vezes com Rodrigo ao Bofetada, mas nunca dava em nada. O mineiro sempre dava um jeito de sumir com algum turista, deixando vários chopes para ela pagar. Ele quase não ajudava no orçamento doméstico e ainda por cima gravava vídeos da Madonna por cima das fitas da clínica e as emprestava para os colegas da CAL.

Um dia, sem avisar, Rodrigo voltou para Juiz de Fora e deixou a colega empenhada com o aluguel. Sem grana para comer, Fabiana resolveu cantar suas músicas nos ônibus da zona sul. No primeiro ônibus, se desentendeu com um mulato com a metade do rosto coberta de pasta d'água, vendendo cartão postal.
- Cai fora, baranga, você tá atrapalhando minha apresentação teatral.
- Te fode, crioulo!
- Foda-se você, sua gorda sapatão.

Aquela era a gota d'água. Fabiana não se conteve e partiu pra briga com o cara. No meio da confusão, um pivete rouba o violão dela. O motorista se emputece e expulsa os dois no meio do Aterro do Flamengo. Fabiana fica apavorada. É tarde da noite e o lugar está escuro. Cheio de homens buscando sexo casual. Apavorada, caminhou em direção a um ponto de ônibus. Uma voz familiar chamou por seu nome. Era Rodrigo saindo do meio das árvores:

- Rodrigo, que bom ver você! - Fabiana suspira aliviada.
O garoto abraça a amiga, que feliz, canta, com os olhos marejados:
- Onde foi, exatamente, que larguei, naquele dia mesmo, o leão que sempre cavalguei?
Ele se emociona ao ver a amiga fragilizada e dá um abraço apertado, cheio de afeto, aproveitando para o roubar os últimos 50 reais que ela trazia no bolso.