Escrito por F. Boehl e Phelipe Cruz




::Arquivo


Rio de Janeiro, Brasil



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Eu voltei agora pra ficar...
Mas aqui, aqui não é meu lugar. O i:u está de volta, depois de um longo e tenebroso inverno. Está com endereço novo interurbanos.zip.net, mais confortável e fresquinho, como a sensação de estar usando uma calcinha que você acabou de tirar da gaveta. Acessa lá.

 
Tudo chega a um fim. E neste caso, um fim cheio de pontos de interrogação. O último conto está aqui embaixo, junto com o erro do blogger, que resolveu invadir todos os outros. Agradecemos a audiência e todo o carinho demonstrado por nossos queridos leitores. A vida é bela. Só as mães são felizes. Cheirem minha virilha!

 
Todo mundo adorava M?rcio. Estava sempre sorrindo, sempre disposto a ajudar. Pagava as contas de todo mundo no banco. Nunca enfrentava fila. Chegava na agência e ia direto no caixa. Até as velhinhas deixavam ele furar a fila. Era deficiente f?sico. Mancava da perna esquerda. Contudo, era bem humorado e fazia graça da pr?pria desgraça. Nas festas da empresa, sempre dançava a m?sica do momento. Desde cl?ssicos como a dança da garrafa a sucessos recentes como egüinha pocot?. Os colegas morriam de rir com as performances.

A ?nica pessoa que n?o gostava muito disso tudo era dona Suzana, a m?e do garoto. Sentia-se culpada porque esquecera de vacinar o filho contra a p?lio e deu no que deu. Do?a seu coraç?o ao ver M?rcio sendo tratado como office-boy de luxo ou, pior ainda, idiota.

- Filho, você n?o pode fazer isso. Isso n?o é vida.
- Isso o quê, m?e?
- Deixar as pessoas te usarem, te fazerem de palhaço.
- Queria que eu fizesse o quê? Foi o jeito que encontrei de agradar as pessoas! Ninguém gosta de um aleijado!
- N?o diga essa palavra! Você n?o é um aleijado.
- Sou sim! (Marcos mordeu os l?bios e semicerrou os olhos com raiva) Eu sou aleijado! Aleijado! Aleijado!
- Marcos!
- Me deixa, m?e!
O garoto saiu porta afora, caminhando t?o r?pido quanto podia. Dona Suzana correu atr?s:
- Filho! Meu filho!
Ele se virou, os olhos cheios de l?grimas:
- Que foi, m?e?
- Passa pelo Banerj e paga essa conta pra mim?


 
Deodato estava dentro do ônibus, indo pra academia. Fazia um ano que malhava sério. E dois meses que finalmente tivera a coragem de usar anabolizantes. Estava em estado de testosterona pura. E esse foi o azar de Katiuscia. A garota teve a infeliz idéia de pedir um cigarro para o namorado e acender dentro do ônibus. E nem na janela estava. Deodato sentiu aquele cheiro e logo procurou quem fumava. Olhou para o cobrador e o para o motorista. “Esses filhos da puta sempre fumam no ônibus”, pensou. Mas não eram eles os responsáveis. Olhou para o último banco. O paraíba sentado no banco de trás também era inocente.

Em outros tempos, o marombeiro teria deixado isso pra lá. Daria de ombros, pensaria na merda de país que o Brasil é, faria uma careta e nada mais. Mas agora a situação era diferente. Ele era uma massa de músculos anabolizadas extremamente irritável. Arrancou o cigarro da mão da garota que gritou de susto. Anselmo, o namorado, nem reagiu. Deodato arrastou Katiuscia pelo cangote até a frente do ônibus.

- Tá vendo aquele desenho dum cigarro com um risco vermelho? Tá vendo, sua mula?
- Me solta, seu louco! Anselmo, faz alguma coisa!
- Cala a boca, garota e presta atenção. Aquilo ali diz que é proibido fumar, tá sabendo? É um desenho para que até analfabeto entenda, mas parece que tu não entendeu.

O povo olhava espantado aquela cena. Uns aplaudiram. Outros vaiaram. Mas quando Deodato olhava, todos paravam. Katisucia ficou com raiva do brutamontes lhe dando lição e enfiou as unhas no rosto do agressor.
- Me larga, seu filho da puta! Me larga!
Deodato explodiu.
- O que tu nem nessa cabeça, sua vaca? Pensa que tá no banheiro da tua casa e que pode fazer o que quiser? Não liga pros outros, não? Acende essa coisa nojenta e espera que eu respire? Isso me dá o direito de fazer o que bem entendo também.
Jogou a garota no chão do ônibus, baixou as calças (as dele) e cagou em cima da Katiuscia.
- Nem reclama, garota. No meu caso, nem tem sinal me proibindo de fazer isso.


 
O monge e o escorpião

Monge e discípulos iam por uma estrada e, quando passavam por uma ponte, viram um escorpião sendo arrastado pelas águas. O monge correu pela margem do rio, meteu-se na água e tomou o animal na mão. Quando o trazia para fora, o bichinho o picou e, devido à dor, o homem deixou-o cair novamente no rio. Decidido, tomou um ramo de árvore, adiantou-se outra vez a correr pela margem, entrou no rio, colheu o escorpião e o salvou. Voltou o monge e juntou-se aos discípulos na estrada. Eles haviam assistido à cena e o receberam perplexos e penalizados.

- Mestre, deve estar doendo muito! Porque foi salvar esse bicho ruim e venenoso? Que se afogasse! Seria um a menos! Veja como ele respondeu à sua ajuda! Picou a mão que o salvara! Não merecia sua compaixão!

O monge ouviu tranqüilamente os comentários e respondeu:

- Pois é! Que uó que eu sou.



 
Herculano tinha o carro do ano. Tinha a namorada mais bonita da faculdade. Tinha o maior pinto do vestiário. Tinha as melhores notas. Tinha as melhores roupas. Tinha o melhor som no carro. Tinha o melhor estágio. Tinha tudo o que sempre queria. A família tinha dinheiro. Todos moravam num duplex em Ipanema. Ali Herculano nasceu. E viveu. Seu Jorge da padaria o conhecia desde bebê, quando Dona Angélica o trazia no colo para comprar pães. Adorava o rapaz. Batia no ombro do estudante de direito e dizia: "te peguei no colo"!

De uns tempos para cá, Herculano andou roubando a padaria. Ele e mais uns três amigos. Seu Jorge fingia que não via. Fazia vista grossa para os pequenos furtos dos garotos. Afinal a padaria tinha muito lucro e não queria confusão com a família tão simpática e atenciosa. Mas Herculano continuou roubando.

Um dos funcionários da padaria contou para Seu Jorge que foi entregar cerveja lá em cima e viu os dois amigos do Herculano se beijando. "Aí o filho da Dona Angélica olhou pra minha cara e riu. Ele estava alterado, estranho. Eles riam à toa e muito alto. Um amigo dele era meio viadinho e ficou balançando o pau pra mim. Eu nunca mais volto lá, Seu Jorge. O senhor pode até me demitir por causa disso e eu até vou entender que foi por causa disso mas se eu tiver que pisar naquela casa de novo eu prefiro até que o senhor me demita mesmo de verdade".

Assim Seu Jorge fez. Demitiu o empregado que já não trabalhava mais como antigamente. E depois daquele dia, fez questão de entregar as encomendas pessoalmente.



 
Márcio entrou no elevador do prédio chique do Leblon. Carregava apetrechos de vôlei de praia. Marina estava descendo no mesmo elevador, saindo de uma consulta com a sua analista. O cheiro de cecê e maresia mexeu com os sentidos da moça. Olhou de cima abaixo aquele carioca de 39 anos que ganhava a vida na praia, de sunga, jogando vôlei. Pensou em bobagens. "Nossa. Imagina esse macho bronzeado em cima de mim". Por um momento, pensou em apertar o botão de emergência. "Será que isso faria o elevador parar?" Deu uma risadinha e pensou como estava safada hoje. Fechou os olhos e desabotoou um botão da blusa. Enfiou a mão por dentro e ficou alisando os seios. A outra mão, colocou dentro da calça. Suspirava, aspirando fundo o cheiro de homem que impregnava o elevador. Olhava para Márcio e sorria. Nem percebeu que os andares tinham passado rápido e que já estavam no térreo. Com a porta aberta, uma fila inteira de pessoas olhavam para ela. Márcio logo se defendeu:
- Eu não fiz nada!
Mariana ficou puta e saiu esbravejando:
- Tão olhando o quê? Bando de tarados!



 
Tereza nasceu na Ilha do Governador. A mãe professora de inglês, o pai jornalista. Era uma família educada. Aberta para o mundo. Fechada para a Ilha. Tereza odiava aquele lugar (e aquela gente) com todas as forças. Odiava festa de aniversário com cajuzinho, odiava o próprio cajuzinho, odiava fumar maconha na praia poluída da baia, odiava Lulu Santos. Fez vestibular para a PUC, apesar da UFRJ ser pertinho. Queria estudar na Gávea mesmo.
- Mas a PUC é tão cara, Tereza.
- Foda-se, papai. Eu não vou estudar em um mangue nojento. Já não basta morar em um?

Tereza se deu bem na faculdade. Fez amigas patrícias que a ajudaram a esconder as suas origens. Dormia na casa de uma, de outra e assim aos poucos foi deixando de visitar os pais. Os pais não ligavam muito, assim eles eram livres para fazer tudo aquilo que a filha sempre taxava de coisa de suburbano.
Tereza conheceu Renato na PUC. Ele era goiano, filho de fazendeiros. Rico. Culto. Viajado.
- É com esse que eu caso!
E se casou. A família nem foi convidada para o casamento. A cerimônia foi uma pedra no passado classe média da menina. Agora ela pertencia à high society. Montou um apartamento em São Conrado cheio de móveis e objetos de designers famosos. Tinha um espremedor do Starck. Almoçava no Celeiro. Jantava no Carlota. Dirigia um New Beetle. Escrevia e-mails num iMac. Passava os fins-de-semana em Angra.

Era feliz. Até o dia que encontrou Renato de quatro sob o seu Adilson, o zelador. Iniciou um escândalo. Renato arqueou as sobrancelhas e calmamente disse:
- Tereza, não me venha com essa sua moral suburbana.
Tereza arregalou os olhos e ficou quieta. Saiu do quarto e sentou-se em sua cadeira irmãos Campana. Renato a pegara em seu calcanhar-de-aquiles. Agora fazia o que bem entendia sem que a esposa pudesse reclamar. Inclusive cobrir o pau com cajuzinho para Tereza chupar.


 
Leonardo e Tiago trabalhavam juntos. Leonardo feio, o outro bonito. Leonardo fracassado, o outro bem sucedido. O garoto queria ser importante. Queria ser igual a Tiago. Ficaram amigos. Almoçavam juntos. Tiago era simpático. Ouvia Leonardo com paciência. Já sabia de todos os bens do novo amigo sem ao menos perguntar. Mas Tiago não era inocente. Sentia que Leonardo tinha complexo de inferioridade e que precisava se valorizar constantemente: "Eu moro em Belford Roxo mas eu tenho carro. Eu tenho dinheiro. Minha casa é três vezes maior que a de qualquer otário que mora na zona sul do Rio. E é três vezes mais barata".

Tiago só sorria e pensava: "Prefiro uma Gisele Bundchen de C&A a uma Carla Perez de Prada". Sim, Tiago era gay. E não parava de receber cantadas quando ia de metrô para o trabalho. Leonardo tinha desistido de ir de carro para o serviço. Tinha que estacionar longe e nenhuma garota via o trabalho que ele tinha polindo o carro durante todo o fim de semana: "O metrô! O segredo do Tiago é o metrô", foi a conclusão que chegou.

Na semana seguinte, foi de metrô. Chegava no trabalho e falava alto no corredor, contando sobre a "maluca" que não parava de olhar para ele. A secretária, percebendo as novas roupas que ele tinha comprado, brincava:

- Nossa, Leonardo. Vamos em que festa?
- Ih, essa roupa aqui eu catei lá no armário, assim, do nada.
- Nunca te vi com ela...
- Porra, isso é óbvio! Eu tenho muita roupa. Você não tem idéia...

Os telefonemas eram todos para Tiago. E Leonardo queria sempre saber quem era. "Ah, um amigo meu, uma amiga minha...", Tiago respondia. O garoto de Belford Roxo começou a comprar os mesmos discos que Tiago comprava na hora do almoço. Os mesmos livros. E na semana seguinte, teve uma luz. "Será que ele é gay? Ele nem fala de mulher". Começou a desconfiar de Tiago. Depois, percebeu que todo mundo já sabia. Menos ele. Aquilo já era demais. "Que nojo. Assim não dá pra competir. O cara tá indo longe demais", pensava.

Mas no sábado, foi parar numa boate gay. Encheu a cara e beijou mais de três homens. Um deles, Eurico, atencioso, chegou a conversar com Leonardo. Ouviu tudo o que o garoto queria contar: como era bom morar em Belford Roxo, ter uma casa tão grande, com televisões cinematográficas, computadores, quadros valiosos e carros. Desabafou sobre a sua amizade com Tiago. O quanto admirava o colega de trabalho, o quanto queria ser igual a ele e o quanto o invejava. No carro, chegou a chorar. Jorge, que também morava no mesmo bairro, tinha achado um perdido. Disse que dirigia o carro e o deixava em casa. Subiram as escadas tropeçando no escuro. Leonardo se jogou na cama e lá adormeceu. Foi o tempo suficiente para que Eurico levasse tudo.

No dia seguinte, Leonardo não olhava na cara do Tiago. Na cozinha, chegou a derramar café quente na camisa branca do amigo, que logo respondeu: toma cuidado, Cinderela.


 
Flávia e Fernando se encontraram na fila do buffet, em frente aos bifes à parmiggiana. Não se viam há tempos e trataram de pôr as novidades em dia:
- Flavinha, beleza? Como tá o Gustavo?
- Gustavo já era. Mandei passear.
- É mesmo? Tá solteira?
- Tô com o César, mas vou terminar. Muito galinha.
- Que coisa...
- Pois é, homem não presta! Não tem um que valha a pena!
- Você acha?
- Não é verdade? Ou é pobre, ou é gordo, ou é velho. Por que não pode ser lindo, sarado, rico, carinhoso, inteligente e fiel?
- Quem muito escolhe, pouco acerta.
- O que você quis dizer com isso?
- Nada. Tô falando dos bifes. Pega um logo. O povo da fila já tá reclamando.



 
O pior defeito

A firma em que Alexandra trabalhava quebrou. Agora a garota estava à procura de emprego. Na primeira entrevista que foi, o cara perguntou qual era seu maior defeito.
- Perfeccionismo - foi o que ela respondeu.
O entrevistador, já acostumado com esse tipo de resposta clichê, resmungou qualquer coisa e se despediu de Alexandra.
Vendo que deu mancada, a desempregada resolveu usar de honestidade na próxima entrevista. Quando perguntada sobre seu pior defeito, não pensou duas vezes:
- Preguiça.
O entrevistador ergueu o canto da boca, reprovando o comportamento e a candidata.
Na entrevista seguinte, a mesma pergunta fatídica de novo. Alexandra mordeu o lábio inferior, jogou o rosto pra frente e olhando nos olhos do entrevistador respondeu:
- Eu sou uma garota muito, muito má.
E assim conseguiu o emprego.



 
- Eu não agüento mais nossa relação!
Raul não acreditava no que via. Eliane de mala na mão, saindo pela porta afora. Era o fim de um casamento de cinco anos. Tá certo que a mulher tinha síndrome do ovário policístico e que não transavam desde o Natal. Mas mesmo assim, aquilo o magoou. Ele não esperava por aquilo. Aliás, nada na vida dele era o que ele sonhava. Pensava que aos 28 anos, seria um grande jornalista, um correspondente internacional ou até mesmo um poeta talentoso como o Pedro Bial. Que teria uma mulher linda, várias amantes, um BMW na garagem e uma cobertura na Sernambetiba. Mas a vida foi sacana. E Eliana não podia sair assim, do nada. Raul tinha que intervir:
- Ô, onde você pensa que vai com o meu CD da Norah Jones?


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- Eu não agüento mais nossa relação!
Foi o grito de independência de Eliana. Era o fim de um casamento de cinco anos que só a deixou mais gorda, mais mal-humorada e mais frustrada. Não queria mais aquilo. Queria ser outra pessoa, diferente. Chega de se lamuriar, de sofrer. Queria ser aquela mulher que sempre sonhou. A mesma que conheceu Raul na faculdade de jornalismo e que queria ter passado a lua de mel em Paris e não em Teresópolis. Pegou as malas, foi para rua e ligou para Suzana, que trabalhava no Globo:
- Oi, posso ficar ai contigo? Eu e o Raul nos separamos.
A amiga, lésbica, adorou a notícia:
- Não te preocupa, vai dar tudo certo. Você pode ficar aqui o tempo que quiser. E aquela vaga no meu departamento ainda tá de pé, viu?
Eliana passou aquela noite na cama de Suzana. Transaram ao som de KD Lang. E era muito melhor que Norah Jones.



 
O dia em que Bárbara foi apresentada para a ironia.

- Oi, prazer...como que eu pude ficar tanto tempo sem te conhecer?
- Pois é...eu sou pra poucos.
- Mas e aí? Tá a fim?
- Claro!
- Sério?
- Claro que não, garota!


 
Cecília e Mariana se conheceram no trabalho. Eram diferentes em temperamento, mas logo se tornaram amigas. Talvez pelo fato de serem gordinhas num mundo de secretárias-executivas-saradas. Sempre almoçavam juntas e tentavam fazer dietas juntas. Cecília, mais velha e autoritária, controlava:
- Mariana, olha só a quantidade de molho que você pôs na salada! Isso engorda!
- Ah, Ciça, comer só alface não tem graça...

Mariana nem era tão gorda quanto à amiga. Nem precisava fazer dieta. Era casada, ao contrário da outra que aos 28 anos ainda não sabia o que era um namorado. Ficava contando calorias mais pela companhia. Tratava a dieta como um hobby. Cecília não. Levava a coisa a sério. Queria perder peso a todo o custo. Queria usar manequim 34. Queria que os pedreiros mexessem com ela quando passasse. Queria ser feliz.

Doutor Maciel, vice-presidente, adorava brincar com a mania das meninas. Almoçava com as duas e colocava batata-frita nos pratos delas. As duas sorriam amarelo e assim que ele olhava para o lado, franziam o nariz uma para a outra.

O chefe havia avisado que na sexta seria seu aniversário. Daria uma festa no escritório com bastante bolo, refrigerante, sorvete e afins. Queria saber como as duas iriam fazer.
- Nunca! Ficaremos na dieta - Cecília gritou.
- Que isso, Ciça? Eu vou comer nem que seja um pouquinho. Que desfeita...
Cecília não acreditou no que ouviu. Arregalou os olhos. Maciel abraçou as duas: "É isso aí, minhas meninas".

No dia do aniversário, a espera pela festa era grande. Quando chegou a hora, Cecília vagava pelas salas do escritório tentando evitar o burburinho. Chegou a flagrar Carminha dando uns beijos em Fernando no corredor. Viu a nova roupa de Sandra, que marcava todo o seu novo corpo escultural. Até os gays do RH, sempre comedidos, davam uns amassos na escada. Mariana contava a todos que o marido tinha tatuado seu nome no bíceps. O clima de felicidade enojava Cecília. Todos riam e brincavam. Menos ela. Todos eram magros e felizes. Menos ela. Todos tinham seus pares, até a Mariana. Menos ela. Chorando, trancou-se no banheiro. Na hora dos parabéns, saiu correndo pelada e se jogou em cima do bolo. Arrancava pedaços enormes de torta e os esfregava na vagina, aos gritos:
- Comam! Comam tudo!
No dia seguinte, Mariana almoçou com a Sandra e a Carminha. Cecília pediu um Big Mac pelo telefone para comer sozinha no escritório.
- Posso trocar minha batata frita pela salada?
- Pode! No McDonalds quem faz a oferta é você!


 
A águia e as galinhas

Uma vez, um sacerdote católico encontro um filhote da águia caído no chão. Como bom samaritano, recolheu o bichinho, ainda incapaz de voar, e o levou para casa. Sabendo da incompetência dos padres em gerenciar uma família, deixou a aguiazinha aos cuidados das galinhas que mantinha. Assim a águia cresceu sem saber de sua ascendência nobre. Pensava ser também uma galinha.
Um dia, depois de ser expulso da Igreja Católica, o agora ex-padre voltou ao galinheiro e encontrou aquela bela ave em meio a galinhas ciscando a terra e brigando por um punhado de milho. Chocado com a cena, puxou a águia para um canto e falou, cheio de culpa:
- Escuta, tu és uma águia. Foste feita para planar no azul sem fim dos céus. Esta existência limitada a terra é degradante. Vem comigo, vem conquistar o lugar que é teu por direito.
Levou a águia para a beira de um penhasco e usando muita persuasão a convenceu que era capaz de voar.
A águia, com lágrimas nos olhos, murmurou "muito obrigada, seu Leonardo" e se jogou no vazio do espaço. Não deu nem para bater as asas duas vezes, caiu como uma pedra e se espatifou no chão.
Foi servida com farofa no almoço de domingo, ao som da Dança da Manivela.


 
Jussara era ciclotímica. Era o que ela dizia, nas poucas vezes que se via obrigada a se desculpar por sua eterna inconstância de humor. Os que a conheciam preferiam a chamar por outros nomes como destemperada, psicótica ou menstruada. A garota usava o humor como arma. Quando estava bem, ria alto e dava balas de mel para todo mundo. Quando estava mal, chegava tarde, resmungava um bom dia e passava a gritar ordens absurdas o dia todo. A garota era gerente de conteúdo de um web site. Batalhou muito para conseguir aquela posição. Só deus sabe quantas balas de mel deu para seus chefes para chegar até ali. Não podia se dar ao luxo de falhar. Era niteroiense e isso a cobria de vergonha. Ter um emprego que pagava bem e uma posição de chefia era uma espécie de antídoto para o seu passado. Suas ordens absurdas e sua exigência no cumprimento destas eram bem vistas por seus superiores. O mau humor a ajudava. Os funcionários obviamente não viam a coisa do mesmo jeito. Não entendiam como aquela mulherzinha destemperada conseguiu chegar onde chegou. Ficavam inventando apelidos para a chefa e acabavam esquecendo os destemperos.

O site começou a passar por dificuldades financeiras e muita gente começou a ser mandada embora. A equipe de Jussara agora se resumia a ela e Clara, sua assistente. Clara não havia sido mandada embora porque era estagiária e competente. Por um terço do salário, fazia tudo que seus ex-colegas faziam. Sem ninguém mais para aporrinhar, Jussara acabou concentrando todos os efeitos de suas flutuações de humor na estagiária. No começo, Clara ainda guardava as balas de mel na gaveta, dizendo que ia comer mais tarde, que recém tinha escovado os dentes ou que estava de dieta. Nunca dizia a verdade. Odiava balas de mel. Nos dias de mau-humor de sua chefe, respirava fundo e acatava as ordens com resignada paciência. Um dia, Jussara veio com uma pilha de papéis recém impressos:
- Clara, eu já não disse para usar corpo 11 para digitação dos meus relatórios? Corpo 12 gasta mais papel. Vai, imprime isso tudo de novo!
Clara arregalou os olhos e tentou contra-argumentar:
- Mas se eu imprimir de novo, vou gastar mais papel ainda.
- Escuta aqui ô, garotinha. Não tenta discutir não. Quem você pensa que é? Fez merda e agora vai consertar.
A estagiária não falou nada. Jogou Jussara pela janela e a chefe despencou 11 andares, caindo morta sobre as bancas de camelôs da avenida Rio Branco.
Quando a polícia a interrogou, Clara se justificou:
- Eu sou ciclotímica.


 
Camila e Fernando se casaram dois meses depois que se conheceram. Ninguém entendeu muito bem o que ela tinha visto no cara. Ele era esquisito, usava umas roupas estranhas e tinha cheiro de mofo. As tias fofoqueiras diziam que era dinheiro, mas a verdade é que a tímida web designer se apaixonou pelo rapaz à primeira vista . E vice-versa. Em um ano de casados, a paixão já havia arrefecido. Pelo menos, pelo lado de Fernando. Ele já não tinha tesão na esposa. Ficavam os dois vendo MTV e toda a vez que a Fernanda Lima aparecia Fernando coçava o pau e dizia:

- Isso que é mulher, não é a porcaria que eu tenho lá em casa.

Olhava para a esposa ao lado e ria como se tivesse feito uma piada. Camila não falava nada. Pegava o controle remoto e mudava para o Superbonita, na GNT. O marido protestava e saía da sala resmungando. Camila ficava na sala chorando e assistindo aos conselhos de como deixar as tetas com uma aparência maior.

Fernando a traía constantemente. Com qualquer coisa que aparecesse. Sempre justificava: "Camila não é o suficiente pra mim. Eu preciso de muito sexo, cara." Fernando era DJ. Trabalhava de noite. O resto do dia era gasto vendo TV, malhando ou comendo cus e bocetas. Camila não sabia da última parte. Ou fingia que não sabia. Volta e meia, encontrava uma cueca nova, misturada aos lençóis sempre úmidos de suor. Fernando dizia que suava muito quando dormia a tarde. Ela fazia que acreditava, fazia uma cara feia e trocava de canal de novo.

Um dia, Camila chegou mais cedo em casa. Fernando estava na academia. Achou uma calcinha marrom entre os lençóis encharcados de suor. Sabia que a calcinha não era dela: "Porra, eu sou web designer! Jamais usaria uma calcinha marrom!" Foi o que disse à sua mãe pelo celular, enquanto chorava vagando pela casa. Quando sua mãe começou a falar que tinha avisado sobre esse rapaz, Camila desligou com raiva. Ela já não sabia o que sentia. Ódio por Fernando, raiva de si mesma. Pena de si mesma, pena do marido idiota que pensa com a cabeça do pau. Tristeza, amargura, resignação. Um carnaval de sentimentos ruins sambava em sua cabeça. Ela olhou para a banheira e imaginou seu corpo estendido na água morna enquanto seu sangue coloria tudo de vermelho. Lembrou-se que o filho da puta do marido não havia mandado consertar o aquecedor.
Não seria isso que a impediria. Estava cansada de ter a vida controlada pelos erros do marido. Não seria mais uma vítima. Foi até a cozinha, encheu várias panelas de água e pôs para ferver.

- Ah, seu imbecil. Vou fazer você sofrer do mesmo jeito que eu tou sofrendo.

De panela em panela, foi enchendo a banheira. Quando sua última leva estava pronta, Fernando havia voltado da academia, sem que ela percebesse. Camila encontrou o marido estirado na banheira, fumando um baseado. "Aê, Camila, pega aquele meu CD do Pearl Jam?" Camila começou a chorar. Sentou-se à frente da tevê. Daniela Escobar ensinava como fazer seus peitos parecerem maior. Camila já sabia disso.


 
- Que vá todo mundo pro inferno! Especialmente você, Albuquerque!

Foi assim que Claudia se despediu de seu chefe e saiu do trabalho. Era uma sexta-feira, o clima, como usual, era de felicidade e confraternização. O que fez com que todo mundo estranhasse mais ainda aquele ataque aparentemente desnecessário. Claudia pegou o elevador, não deu a boa-noite de sempre ao seu Feliciano e saiu pisando duro e olhando feio pela rua afora. Era capaz de esganar qualquer um que falasse alguma coisa com ela. Não, não estava de TPM. Estava puta mesmo. Nem desviava das pessoas. Deixava que os ombros se chocassem. Chegou a derrubar algumas bolsas e umas duas velhinhas. O celular tocou e em vez de atender, ela o lançou no meio dos carros. Arrancou a presilha que segurava os seus cabelos no alto. Tirou, por dentro da blusa, o sutiã que a amarrava e acelerou o passo. Sabia que tinha que pegar o ônibus para voltar para casa, mas naquele dia faria tudo diferente. Estava revoltada. Ignorou o ponto de ônibus e seguiu adiante. Aquela pequena subversão de seus hábitos lhe trouxe um pouco de felicidade. Cláudia sorriu. O vento contra o seu corpo a fazia mais feliz.

Naquela sexta-feira, tinha trabalhado demais. Estava sem namorado, sem esperanças e cheia de dívidas. A única coisa que tinha, era trabalho. E mais trabalho. No fim da tarde, tinha recebido um e-mail de seu superior, oferecendo uma noite a sós e que depois disso, ela poderia trabalhar menos e ganhar mais. Cláudia ficou revoltada. Sabia que não conseguiria topar aquele acordo. Sentiu-se idiota por não conseguir ser esperta como a Márcia, a Claudete e a Regina, que tinham conseguido os cargos de diretora daquele jeito. Uma chuva começou a cair. Ela foi caminhando até sua casa. Já estava escurecendo, mas Cláudia não se importava. Já não se importava com nada nem com ninguém. Desabotoou a blusa, jogou ela no chão. Ficou só de saia. Tirou a saia. Estava livre, molhada. Era um animal solto pela natureza. Tinha pêlos, vontade, garra, podia fazer o que bem entendesse. Jorge também era assim. Pegou a garota à força e a estuprou. Nem seu chefe ele era.



 
A vida imita a arte: Resgate de celular que caiu na privada mata 3 no Quênia


 
Gabriel, aos 26 anos, ainda era virgem. Namorou Juliana durante três anos. Mas não faziam sexo. Juliana dizia que não ligava para essas coisas. Ele acreditava. Adoravam brincar na cama. Quando surgia alguma tensão sexual, os dois se entreolhavam:

- Vamos comer churros?
- Vamos! Quem chegar por último, paga.

A menina o traía com todos os amigos. Gostava de Gabriel, mas sabia que ele era algo especial e que não podia fazer sexo com ele. Sexo sujaria toda a relação que era tão bonita e pura. Via o namorado como uma espécie de Michael Jackson carioca. Amava o garoto, mas precisava de caras que a pegassem de jeito, que a comessem com força e ainda gozassem em sua boca.

O namoro chegou ao fim quando Gabriel não agüentou mais ouvir de seus amigos sobre como Juliana era gostosa. Digão, seu amigo de infância, adorava contar os detalhes: "Mermão, ela mama direitinho. Agora eu entendo porquê você está com ela. Ainda bem que tu sabe que ela é vagabunda e não se importa em dividir com a gente".

Gabriel sabia que tinha obrigações sexuais com a namorada que cedo ou tarde haveria de cumprir. Pensava nisso o tempo todo, o que estava atrapalhando uma carreira promissora de web designer e trazendo mil complicações. Já tinha pensado em pular do quarto andar, mas não queria estragar o canteiro da Dona Rose, a síndica.

Tinha que dar um jeito na sua situação. Na segunda-feira, ligou para Dr. Góes. Ia tirar o siso.
- Tenho que resolver uma coisa de cada vez. - Foi o que escreveu em seu blog.


 
Verão

- Eu não trouxe sunga, mas a minha cueca é de lycra.
Wilson esticou o elástico da bermuda, mostrando a cueca branca:
- É a mesma coisa só que um pouco mais fina.
Terminou a frase, tirou a bermuda e correu para o mar de Copacabana. Quando voltou do mergulho, Alice já não estava lá. Foi embora para o Rio Comprido. Com a bermuda dele junto.

...

- Vamos no de ar condicionado. É só 20 centavos a mais, André.
- Tá maluca? 20 centavos meu, 20 teu. Em cinco dias isso dá dois reais! A gente pode comprar dois mates com essa grana.
- Até parece, tu nunca compra nada na praia pra mim.
- Claro você gasta toda minha grana com bobagem.
- Mão-de-vaca!
Marlene fez sinal para um táxi.
- Me leva até o Leblon? Eu tô sem grana, mas pago um boquete sem comparação. (Fez um biquinho para o motorista).
- Te fode, baranga. Com essa cara, isso não paga uma volta no quarteirão.
O táxi arrancou deixando Marlene para trás. André foi para Copacabana sozinho em um ônibus com ar condicionado e ainda tomou um mate com o que sobrou do dinheiro.

...

Laís odiava ir com a mãe para a praia. Dona Neuza era uma quarentona que oxigenava os cabelos, conversava com todo mundo e tinha um cavalo-marinho tatuado em uma das tetas. Laís era toda séria e reservada, usava Sundown 50 e escutava Tribalistas.
- Vambora, Laís?
- Porra, mãe! Vai por um maiô. Ninguém precisa ver essa barriga escrota.
- É ruim de eu usar maiô e ficar com marca branca.
- Como se alguém fosse notar. Quer ficar bronzeada para quem? Ninguém te quer.
- Ninguém te quer também.
As duas desceram o elevador sem trocar uma palavra. Dona Neuza olhava o infinito. Laís emburrada olhava o chão.
Quando chegaram na areia, a mãe estendeu a canga e se deitou de costa, soltando a parte de cima do biquíni.
- Por favor, mãe. Pára com isso. Tá praticamente de top less.
- Laís, vai a merda.
Laís foi para beira d'água. Sentou-se no chão, chorando de raiva. Começou a catar tatuís para pôr no castelo de areia que construía. De vez em quando resmungava:
- Tem gente que não tem noção do ridículo mesmo.


 
Todos chamavam Regininha de Poltergeist. Não por causa da gostosa do Fausto Fawcett. E sim por ser um susto, assim como o filme. Era feia. Muito feia. Mas era a melhor amiga da mais bonita da faculdade. Arranjava homens para a gostosa da Cíntia com a sua simpatia e desprendimento. As duas se davam bem. Regininha não tinha inveja da amiga. Cíntia também não. Não a tratava bem só por pena da amiga ser gorda, feia e cheia de espinha. As duas eram amigas de verdade.
A única diferença era que Cíntia ficava com todos os meninos bonitos e Regininha era apaixonada por Matheus. Passava dias e noites pensando nele. Se o garoto pedisse uma caneta emprestada, era motivo de felicidade para a semana inteira. Cíntia brigava com a amiga, dizendo que ela não podia ser muito agradável ou ficar olhando demais pra Matheus. Que tinha que se dar ao respeito. Que era linda, inteligente e merecia alguém melhor.

O feriado de carnaval estava chegando. Todos iriam para Angra. Ficariam na casa de Augusto. Cíntia saltitava de felicidade, louca para ir. Regininha nem um pouco.
- O Matheus vai...Eu não sei se vou agüentar ver ele ficando com outra menina. Não sei se vou agüentar ficar perto dele. Acho melhor ficar por aqui!
- Ah, Rê, vamos comigo. A gente não vai ficar com ninguém. Vamos só nos divertir e olhar os meninos de sunga, de toalha saindo do banho, jogar vôlei, pegar uma cor... Ah vamos...

Regininha foi. De noite, rolou luau na praia. Cíntia bebeu. Ficou com três garotos embaixo da canga. Inclusive Matheus, também bêbado. Calafrios tomaram conta do corpo de Regininha. Dor de barriga também. A decepção misturada com raiva coloriu de vermelho as bochechas da gorda. Regininha se levanta. Vai em direção à fogueira e se joga. Ninguém percebe. Todos continuam se beijando. Na quarta-feira de cinzas, encontram Regininha carbonizada.



 
Fabiana era uma garota porto-alegrense que adorava MPB. Mudara-se para o Rio em busca de uma chance de expor seu talento. Esta era sua chance de brilhar. Queria calar a boca de familiares e colegas preconceituosos. Especialmente a de sua mãe que sempre dizia:
-Fabiana, por que você não pode ser como sua irmã? Você tem que arranjar um namorado, minha filha. Segue aquela dieta que tua irmã faz. Você era tão bonitinha quando era criança...
A garota mostrava o dedo do meio para dona Leda e pegava o T3 para a faculdade. Na faculdade de biblioteconomia, não era diferente. Enquanto ficava cantando e tocando violão no bar, as estudantes de relações públicas apontavam para ela e faziam piadinhas.

- No dia em que fui mais feliz, eu vi um avião...
Cantou esse pedaço da música o tempo todo na viagem para o Rio. Só parou quando o comissário de bordo atendeu às reclamações dos outros passageiros e pediu gentilmente que a garota calasse a boca.
No aeroporto, conheceu Rodrigo, um estudante de teatro vindo de Juiz de Fora. Rolou uma afinidade imediata e ela sugeriu dividir uma quitinete no Leblon. Fabiana sorriu e cantou:
- O inverno no Leblon é quase glacial.
Rodrigo adorou a idéia. Ele tinha delírios de grandeza carioca zona sul e adorava as novelas do Manoel Carlos. Pagavam mil e duzentos de aluguel. O pouco dinheiro que sobrava, era gasto em miojo da Turma da Mônica e Coca Light.

A garota arranjou um emprego de recepcionista num ginecologista em Copacabana. O salário era baixo, mas ela espiava as pacientes pelo circuito interno de TV. Às vezes, gravava e levava a fita para casa para se masturbar. Era muito tímida e não tinha vida social nenhuma. Havia tentado ir algumas vezes com Rodrigo ao Bofetada, mas nunca dava em nada. O mineiro sempre dava um jeito de sumir com algum turista, deixando vários chopes para ela pagar. Ele quase não ajudava no orçamento doméstico e ainda por cima gravava vídeos da Madonna por cima das fitas da clínica e as emprestava para os colegas da CAL.

Um dia, sem avisar, Rodrigo voltou para Juiz de Fora e deixou a colega empenhada com o aluguel. Sem grana para comer, Fabiana resolveu cantar suas músicas nos ônibus da zona sul. No primeiro ônibus, se desentendeu com um mulato com a metade do rosto coberta de pasta d'água, vendendo cartão postal.
- Cai fora, baranga, você tá atrapalhando minha apresentação teatral.
- Te fode, crioulo!
- Foda-se você, sua gorda sapatão.

Aquela era a gota d'água. Fabiana não se conteve e partiu pra briga com o cara. No meio da confusão, um pivete rouba o violão dela. O motorista se emputece e expulsa os dois no meio do Aterro do Flamengo. Fabiana fica apavorada. É tarde da noite e o lugar está escuro. Cheio de homens buscando sexo casual. Apavorada, caminhou em direção a um ponto de ônibus. Uma voz familiar chamou por seu nome. Era Rodrigo saindo do meio das árvores:

- Rodrigo, que bom ver você! - Fabiana suspira aliviada.
O garoto abraça a amiga, que feliz, canta, com os olhos marejados:
- Onde foi, exatamente, que larguei, naquele dia mesmo, o leão que sempre cavalguei?
Ele se emociona ao ver a amiga fragilizada e dá um abraço apertado, cheio de afeto, aproveitando para o roubar os últimos 50 reais que ela trazia no bolso.



 
Os restaurantes do Leblon estavam sempre lotados. Especialmente aqueles em que Alfredo costumava almoçar. Cheios de pessoas, bolsas, mochilas e sacolas. Grande parte das mulheres chegava tarde e marcava o lugar na mesa antes de se servir. Não tinha coisa mais irritante para Alfredo do que ter que procurar, com a bandeja na mão, por um lugar vazio. E quando achava, lá estava uma bolsa pomposa guardando o território. Ficava vermelho de raiva. Por um tempo, tentou relevar, mas não conseguiu. Quando estava de bom humor, simplesmente trocava as bolsas de lugar. Nos dias de fúria, derrubava pratos inteiros, bem caprichados no feijão, nas bolsas inconvenientes. Numa segunda feira, no Spoleto, derramou todo o seu fetuccini ao molho branco nas mochilas de umas estudantes. Fingiu acidente e se serviu de novo. Desta vez, com o molho bolonhesa, que tingiu de vermelho-sangue a bolsa de uma velha:
- Nossa, como estou desatento hoje.

Alfredo era gordo. E muito feio. Usava óculos de aro grosso, com lentes pesadas e pochete. Transpirava bastante e sempre carregava um crachá da Telemar pendurado no pescoço. Normalmente, quem sentava para comer ao seu lado, apressava a refeição. Alfredo tinha respiração ofegante e comia com a boca aberta. Numa sexta-feira, uma loira de tailleur chegou a ter ânsia de vômito. Emputecida, chamou o gordo de porco nojento e saiu pisando duro. Alfredo deu de ombros, terminou de engolir uma almôndega inteira e voltou pra fila. Quando retornou, uma bolsa estava em seu lugar. Já era provocação. Ele encarou a bolsa e ela o encarou de volta. Não pensou duas vezes. Largou o prato na mesa, seqüestrou a bolsa, agarrando-a pela alça como se a estrangulasse e saiu do restaurante sem ninguém perceber. Andando pela rua, ria sozinho. Sentia-se feliz, leve. Resolveu abrir a bolsa. Dinheiro, cartão de crédito e celular. "Pô, me dei bem!"

Roubar bolsas em restaurantes virou um hobby lucrativo para Alfredo. Por meses, se aproveitou de mulheres incautas que deixavam suas vitor-hugos dando sopa. Fez muito dinheiro. Disse para Suzana, sua esposa, que tinha sido promovido e que agora ganhava bem. Com o sucesso financeiro, passou a comer mulheres que antes nunca olhariam duas vezes para ele (inclusive a loira de tailleur). Cheio de si (e de dinheiro), deu um pé na bunda da mulher e se mudou para Copacabana. A felicidade durou pouco. Os donos de restaurante do bairro, mais espertos, logo perceberam e deram um fim no esquema do vagabundo.

Alfredo passou dois anos depois na cadeia. Desamparado e com sua pequena vida totalmente destruída, até em suicídio tinha pensado. Para sua surpresa, no dia da soltura, a ex-mulher o esperava na saída. Foi recebido de braços abertos. Alfredo e Suzana voltaram a viver juntos. Traumatizado, passou a almoçar sempre em casa. Suzana cozinhava. E antes de servir a comida ao marido, sempre escarrava no prato.



 
- Quem tem letra bonita?
Mesmo sem saber para que era, Priscila se prontificou. Armando, gerente do supermercado, tinha demitido o letrista e precisava de alguém para fazer os cartazes de preço. Priscila, que era caixa, acabou acumulando a função.

O primeiro cartaz que fez, não gostou. Achou sem graça.
- Não acha que tá faltando alguma coisa, Rita?
Rita, que era caixa também, não falou nada. Era amarga. Tinha um diploma de publicitária da Estácio e nunca exerceu a profissão. Aos 30 anos, trabalhava no supermercado perto de casa. Murmurou "enfia esse cartaz no cu, sua puta" e continuou passando as compras da velha pelo leitor ótico.

- Oferta maluca! - gritou Priscila, entusiasmada com a própria criatividade - como é que não pensei nisso antes?

Quando mostrou o cartaz pro gerente, ele adorou a idéia. A partir de então, Priscila ficou encarregada da publicidade do supermercado. Frases geniais como "No nosso aniversário quem ganha é você" e "Carnaval do preço baixo" passaram a decorar a fachada do estabelecimento. Sempre que a garota bolava uma frase nova, gritava como da primeira vez. Rita só punha o dedo na goela como quem forçava o vômito e pedia para morrer.

Na semana passada, Priscila se reuniu com o gerente numa saleta para discutir a nova campanha. Ele queria algo de impacto, que chamasse a atenção dos clientes. Após alguns minutos, começaram a ouvir os já famosos gritos:
- Superofertas imperdíveis! Preços arrasadores!
A gritaria parava por uns tempos e logo voltava:
- Loucura total de preços!
Com as mãos nos ouvidos, Rita implorava por um fim rápido e indolor.
- O gerente enlouqueceu!
Rita, amarga como sempre, comentou com o empacotador:
- Mais uma idéia idiota dessas e eu corto meus pulsos.

O corpo carbonizado de Priscila só foi encontrado na manhã seguinte. O gerente continua foragido. Rita, que ficou incumbida de fazer os novos cartazes, desabafava:
- Eu queria usar "queima total", mas acho tão clichê...


 
Norma segurou a cabeça de Bete e olhou firme em sua direção. Tirou um cigarro da pochete, acendeu e depois de uma longa tragada, pôs-se a falar.
- Bete, minha Bete... Depois de tudo que a gente passou eu posso bater a mão no peito e dizer que sou feliz.
Norma estava estranha. Ela não tinha vocação para falar. Mal sabia grunhir.
- Sei que você largou tudo por mim. Aquele marido babacão, seus filhos ingratos, sua carreira de web designer. Perdeu todas as suas amigas, aquelas patricinhas filhas-da-putas. Eu sei que elas me odiavam, mas tudo bem. Eu sou maior que isso.
Enquanto falava, alisava a fronte da companheira com um carinho incomum. Norma não era disso. Era bruta, quieta e preferia ficar na garagem polindo seu Uno. Continuou seu monólogo.
- Eu sei que eu às vezes sou estúpida. Que bebo demais. Que fico doidona. Eu sei que já te mandei duas vezes para o pronto-socorro. Mas você tem que entender que fiz isso por amor. Morro de ciúmes. E não consigo sequer imaginar viver longe de você.
Os olhos de Norma estavam cheios de lágrimas. Ela aproximou o rosto de Bete e deu um beijo afetuoso.
- A gente foi feita para ficar juntas para sempre, meu amor. Custe o que custar.
Ainda com os olhos marejados, Norma esboçou um sorriso. E devolveu o crânio de Bete para dentro da gaveta de onde havia o tirado.



 
Andréia vivia reclamando do marido:
- O Márcio é um banana. Vinte e oito anos e parece que tem quarenta.

Tá certo, ele era meio caído. Calvo, com óculos fundo-de-garrafa e sempre com roupas formais. Quando eles se conheceram, tinha alguns fios de cabelos a mais e recém tinha passado em um concurso para procurador. O salário alto, aliado à pouca experiência do cara, funcionou como afrodisíaco para Andréia.

Mas agora, vivia insatisfeita. Sentia-se desperdiçada. A mulher era um monumento esculpido em horas de academia. Andréia decidiu que aquilo não podia continuar assim. A velhice não era muito distante e ela não podia desperdiçar o que lhe restava de juventude com um otário daqueles. Passou procurar ativamente por um amante. Por um tempo, ficou caçando na internet. Depois de várias decepções com nerds barrigudos de todas as idades, resolveu que na vida real encontraria o que tanto procurava. Passou a sair à noite todos os fins de semana. E ai do Márcio se ele reclamasse.
- Eu não sou tua prisioneira. Eu quero sair e ver gente!

Márcio, que era um banana mesmo, não fazia nada. Sentava-se diante da tevê e ficava vendo Discovery Kids enquanto a mulher vadiava por aí.
Tanto Andréia procurou que achou. Marcão era tudo o que ela queria: alto, sarado, suado, marrento e filho-da-puta. A mulher ficou louca. Na primeira noitada no motel, até fisting rolou. Sentia-se preenchida, de corpo e alma.

O único problema é que Marcão não era nada fiel. Topava qualquer coisa. Homens, mulheres, crianças e animais. Andréia se conformava. Quando as amigas (as poucas que sobraram) insistiam que ela voltasse para o Márcio e largasse aquele galinha de uma vez, ela, chorando, respondia:
- Nunca, o Marcão é meu. Eu sou a única que agüenta até o talo.


 
Julieta conheceu Romeu na academia. Era o instrutor de musculação dela. "Um deus grego", foi como ela o descreveu para Marquinhos, seu melhor amigo, que logo botou pilha:
- Vai fundo, garota. Se fosse eu, já estava me jogando.
- Até parece, né, garoto... Nem conheço o cara direito.
- Não seja por isso.

Entusiasmado com o possível romance, Marquinhos logo levantou a ficha do rapaz moreno de cabeça raspada. Romeu morava numa quitinete em Copacabana com mais três sarados, todos personal trainers e figurantes da Globo. A família era de Vila da Penha, pai funcionário público aposentado, mãe cabeleireira.
- Vila da Penha?
- É. Algum problema?
- Todos. Minha família me mata se eu me envolvo com um suburbano.
- Pensa bem, dizem que ele... ó... (Marquinhos emparelhou as mãos no ar para em seguida as afastar consideravelmente)

A família de Julieta era do Leblon. Dona Célia e doutor Clóvis criaram a filha única como uma princesa, matriculando-a nos melhores colégios da zona sul. Com algum esforço a garota passou no vestibular para direito na PUC. "Ainda não inventaram melhor lugar para se arranjar um bom partido do que a PUC" era o que sua mãe apregoava. Julieta estava prestes a se formar e ainda não havia descolado um marido a altura dos anseios de sua mãe. Ter um caso com alguém como Romeu só faria a velha enfartar. Apesar disso e convencida pelos argumentos do amigo, Julieta resolveu investir no instrutor pobretão. Romeu, que um tinha um quê de garoto de programa, não resistiu à corte dissimulada de Julieta, que ia para a academia com o Audi 98 do pai delegado, e a convidou para sair. Em uma semana, o romance estava engatado. A garota passou a chegar tarde todas as noites, cheirando a vestiário de academia. Dona Célia, que não era burra, logo percebeu o que estava acontecendo.
- Julieta, quem você está namorando?
- Um garoto da academia. - Julia respondeu e tentou sair rapidamente antes que a mãe pudesse fazer a próxima pergunta. Tarde demais.
- O que ele faz da vida?


Em vez de inventar uma mentira qualquer, Julieta chamou a mãe de vaca controladora e se trancou no quarto chorando. Dona Célia, horrorizada, contou ao marido o que estava acontecendo. O delegado convocou uns amigos para dar uma lição no vagabundo. Quando Romeu chegou em Vila da Penha com alguns molares a menos, a mãe dele não se conteve. Foi até o Leblon e rolou o barraco. O resultado foi Dona Célia no Copa D'Or com hematomas e um par de costelas fraturadas. As famílias estavam em pé de guerra. E no meio desse conflito, o amor de Romeu e Julieta.
- Larga essa patricinha, ela é só confusão. - era o que os amigos de Romeu diziam.
- Tá louco? Já viram a bunda dela? E ela curte anal. Nunca vi uma mulher curtir tanto dar o cu.

Pelo lado de Julieta, a coisa não era diferente. Edneide, a empregada, aconselhava:
- Garota, escuta tua mãe. Isso não vai dar em nada. Daqui a pouco esse vagabundo te dá um pé na bunda e tu vai ficar chupando o dedo.
- Não te mete, sua invejosa! Vocês não conhecem o Romeu. Ele é super romântico, vai tatuar meu rosto no bíceps. Ele me ama. O amor vale mais que dinheiro, status e posição social.
- Yeah, right... (Edneide tinha sido babá por 10 anos nos Estados Unidos)

Por precaução, Dona Célia mandou trancar a garota em casa. Queria evitar qualquer forma de comunicação com o suburbano filho-da-puta. O único contato que a garota tinha com o mundo exterior era com o Marquinhos, através do ICQ:
- Ju, tua mãe é Capricórnio, muito terra, materialista.
- Eu sei.
- Esse tipo de pessoa precisa de um choque, sabe? Algo que mostre que existe algo mais na vida que dinheiro.
- Me ajuda, please!
- Calma, amiga. Eu tenho um plano. Qual é a coisa que tua mãe mais valoriza acima de tudo? Mais que dinheiro?
- Eu?
- Exato.

Marcos, que, além de bicha alcoviteira, era médico, explicou seu plano. Eles simulariam um suicídio cinematográfico, com direito a bastante pílulas "Uma coisa bem Marilyn Monroe". Ele prescreveu à amiga drogas que induziriam a um estado cataléptico. Assim, quando Edneide entrou no quarto, encontrou a garota aparentemente morta. A notícia logo se espalhou e chegou aos ouvidos do Romeu:
- Puta, que garota louca! Ainda bem que me livrei dela.
A família nem avisou à polícia. Providenciaram um funeral rápido e discreto. Quando Julieta acordou já estava debaixo da terra.


 
As Cinco Flechas da Princesa

Existiu há muito tempo atrás uma mulher perfeita. Ela era uma princesa de um grande reino e conhecida por toda a terra por suas qualidades. Seus cabelos eram como fios de ouro descendo da fronde e sua pele era clara como a Lua, quando esta está plena. A jovem era tão versada nas artes quanto na guerra. Manuseava a pena e a espada com igual maestria. Era também bondosa com seus súditos e caridosa com os desafortunados. Todos os que a conheciam amavam e admiravam-na. A princesa, contudo, não era feliz. Nunca tivera um amor em sua vida e isto machucava seu coração gentil. Os anos iam se passando e a donzela, desesperada, buscou a ajuda de uma bruxa. A bruxa ouviu a história da princesa e se dispôs a ajudá-la. Deu a ela cinco flechas mágicas e a seguinte orientação.

- Sobe a torre mais alta de teu reino e atira uma das flechas em qualquer direção. Onde a flecha cair tu irás encontrar um homem que poderá ser teu amor. Lembra-te que a flecha só aponta o caminho. O teu destino é tu que escolhes.

A princesa ouviu atentamente as palavras e cumpriu as orientações. Do alto da torre, empunhou o arco, mirou o sul e lançou sua primeira flecha. A flecha foi cair na humilde fazenda de um camponês. Este era um rapaz forte, bonito e trabalhador. A princesa se encantou com seu jeito simples e honesto de viver e com ele passou uma semana. Ao final de uma semana, ponderou.

- Não posso passar minha vida com ele, por mais adorável que seja. Como ele irá sustentar todos os meus luxos e caprichos sendo tão pobre e sem futuro.

Subiu novamente a torre e desta vez mirou o norte. A flecha caiu junto a um cavaleiro andante. Um homem tão hábil nas armas e tão formoso quanto à ainda donzela. Juntos eles passaram uma semana, na qual ela aprendeu que ele lutava contra o mal que grassava sobre a terra e que havia solenemente jurado vagar o mundo erradicando a heresia e a injustiça. Novamente, a princesa refletiu.

- Ele é nobre e de bom coração. Sua luta é justa, contudo, deixa-me em segundo plano. Juntos seríamos como se fossemos separados. E eu estaria tão sozinha como sempre fui.

Subiu a torre e mirou o leste. O alvo acertado era um jovem trovador. Tão logo, ele a viu, pegou seu alaúde e improvisou a mais bela canção de amor que ela ouviu. A princesa se encantou com a cultura e a sede de saber do músico. Passaram a semana toda entre partituras, poemas, quadros, esculturas e livros. No sétimo dia, ela pensou.

- Este jovem menestrel realmente me impressiona. De tudo sabe e de tudo quer saber. Nunca encontrei alguém com quem pudesse debater por horas a fios sobre tantos assuntos. Entretanto, uma vida dedicada a livros fez dele um homem fraco. Quem irá me defender diante dos perigos da vida?

Voltou a torre e lançou a quarta flecha em direção oeste. Esta caiu no castelo de um rei viúvo. Anos de treinamento e guerras o tornaram um mestre-de-armas. Apesar de ser avançado em idade, era ainda forte como um touro e ágil como um gato. Seu reino era a Meca de todos os artistas das redondezas, porque o rei amava as Artes e era um mecenas dedicado. Rico como nenhum homem a princesa encontrara antes, ele, no entanto, cultivava uma vida de hábitos simples, acordava cedo e comia frugalmente. A semana em que a jovem passou com ele foi a melhor de todas até então. Ao cabo do período, ela pôs-se a pensar:

- Nunca vi homem tão perfeito. Forte e mesmo assim gentil. Um guerreiro com o coração de um poeta. Tão poderoso e ainda assim tão simples. Contudo já é bastante idoso. Não o teria por muito tempo e sua perda só me jogaria para o estado em que estou agora.

E lá se foi ela para torre. Do alto dela, olhou os campos, florestas e montanhas ao redor. Empunhou o arco, ajeitou a flecha e retesou a corda. Fitou o norte, o leste, o sul e o oeste. Pensou nos quatro últimos homens que conheceu. Depois de um longo suspiro, derrubou o arco no chão. Desistiu da busca.

A última flecha, a princesa guardou para si por toda a vida e a usava ocasionalmente para se masturbar.



 
O pessoal da faculdade não ia muito com a cara da Suzana. A garota era bonita demais. E sabia disso. Suzana sempre foi uma loira gostosa de fazer as meninas babarem de inveja. E os garotos, de tesão. A beleza somada com a arrogância afastava a mulherada de Suzana. Para piorar, quando uma delas arranjava um namorado, Suzana logo tratava de estragar o romance ficando com o garoto no banheiro da faculdade e fazendo com que todo mundo soubesse.

Aos 22 anos de idade, Suzana descobriu que tinha desenvolvido um câncer. Desde então, a menina se apagou. Não tinha mais a mesma graça, o mesmo brilho. Nem vontade mais de trepar no banheiro tinha. Estava emagrecendo assustadoramente. As garotas da faculdade nem se importaram. Continuavam a tratar com nojo e raiva. A única alma piedosa que conseguia vencer a barreira em volta de Suzana, foi Alessandra. Foi durante um intervalo entre as aulas, que perguntou:

- Menina, qual é a dieta que você tá fazendo? Tá ficando magérrima!
- É câncer. (Alessandra rolou de rir. Diferente de Suzana, que completou) É sério, garota...

Alessandra era gorda. E sem noção. Não tinha amigo algum até então. As duas se tornaram inseparáveis. Alessandra ia sempre à casa de Suzana. As duas se deram muito bem. Viam filmes, trocavam elogios, dividiam Matte Leão e pão de queijo. A gorda era muito tátil e fazia questão de cobrir a amiga de carinho, beijos e abraços. Com a doença piorando, Suzana precisou de um ombro amigo para chorar suas mágoas. A sempre presente Alessandra estava lá para ouvir. Entre muitas lágrimas e soluços, Suzana contou que não tinha dinheiro para mais nada. Não tinha nem mais roupas que coubessem. Toda a grana era usada com médicos e remédios. A amiga não falava nada. Assentia com a cabeça e continuava dando beijos e abraços na amiga, que agora chorava. Suzana se emocionou:

- Obrigado por tudo, amiga. (Suzana jamais tinha chamado alguém de amigo)
- Pare com isso. Sei que quando eu pegar câncer, você vai fazer o mesmo por mim.
- Que isso, Lê? Câncer não se pega.
- Não pega? E só agora que você me avisa? (Enche a boca de pão de queijo) Merda, acho que vou ter que voltar pra dieta mesmo.


 
O Carvalho e os Juncos

Há muito tempo atrás em uma floresta, havia um belíssimo carvalho. Todas as plantas ao redor o admiravam. Umas invejavam sua madeira dura. Outras, sua copa frondosa que quase alcançava o céu. A sombra refrescante, a vida que se abrigava em seus galhos, o respeito quase religioso que os homens tinham por ele. Toda essa admiração, inveja e respeito tornaram a árvore extremamente orgulhosa e dona de si. Ele fazia pouco caso dos outros vegetais vizinhos. Zombava de suas fraquezas. Ria de seus defeitos. Seu alvo preferido era um grupo de juncos que brotava em uma lagoa próxima.
- Reles criaturas, como se atreveis a expor vossa feiúra e fraqueza tão próximos de mim? Esses vossos corpos moles que nada agüentam. Essa pobreza de folhas que só serve de guarida para ovos de sapo. Já perdi meu tempo demais com vocês, seres rasteiros. Desaparecei de minha frente.
Os juncos nada respondiam. Se os tivessem, dariam de ombros às sandices do carvalho fanfarrão.
Os anos passavam, a árvore cada vez crescia mais em tamanho, força e beleza. E seu orgulho crescia junto. Volta e meia o carvalho saía de seus devaneios autocontemplativos e despejava sua soberba sobre os pobres juncos.
- Ainda estão aí, vis vegetais? Não acredito que nenhuma vaca os tenha feito de pasto. Ou será que nem como pasto vós tendes serventia?
A resposta, como sempre, era um silêncio resignado.
Eis que, durante a noite, uma tempestade feroz se abateu sobre a floresta. Ventos furiosos rugiram a noite toda, acompanhados pelo ribombar dos trovões e pelas chuvas incessantes. Quando o dia amanheceu e o temporal amainou, pode se perceber o tamanho dos estragos. Centenas de árvores abatidas, raízes expostas, jaziam pelo chão. Entre elas, o orgulhoso carvalho.
O mais velho dos juncos, que graças a sua flexibilidade haviam escapados intactos, aproveitou a chance e se pronunciou.
- Vejam irmãos, nosso poderoso amigo, veio se juntar a nós cá no chão. De que adiantou toda a dureza de sua madeira, toda a força de seus galhos, sua altura gigantesca. Eis ele aqui caído. Em breve, fungos e vermes crescerão em seu lenho apodrecido. O poderoso carvalho sucumbiu à tempestade. E nós, fracos e rasteiros, somos os vitoriosos.
O carvalho, ainda vivo, ouviu essas palavras. Juntou todas as forças que lhe restavam e antes de seu derradeiro suspiro, declarou.
- Vão se foder, todos vocês.


 
O Escorpião, o Sapo e o Porco-Espinho

Estava o Escorpião tentando atravessar um lago. Esse era muito fundo e o Escorpião não sabia nadar. Vendo que o Sapo estava por perto, resolveu pedir ajuda. O Sapo ficou temeroso. Sabia que o suplicante era um animal extremamente perigoso e traiçoeiro e se recusou a acudi-lo.
- Não seja tolo, Sapo. Se algum mal te fizer durante a travessia, eu também sucumbiria, morrendo afogado.
O Sapo, vendo que o invertebrado tinha razão, se preparou para carregá-lo nas costas.
Eis que de súbito o Porco-Espinho, vindo do nada, saltou sobre o anfíbio, cravejando-o com seus espinhos. O Escorpião viu atônito sua carona morrer se esvaindo em sangue.
Olhou consternado para o Porco-Espinho.
- Porra! Por que fodeste a minha fábula?
- Porque esta é a minha natureza.


 
A velha que tentava agradar os pombos

Havia uma velhinha muito solitária cujo hobby era dar comida a pombos. Todo o dia, diletantemente, ela se acordava, enchia um saco de milho (era milho bom, ela fazia questão de qualidade) e se punha na praça a alimentar os penosos. Uma meia dúzia de pombos pingados aparecia. Eram poucos. A velha tinha milho para muitos. Ela olhava para aquela turma rarefeita, suspirava resignada e lançava os grãos ao chão.
Cada dia havia menos pombos. Alguns só apareciam por que achavam a velha simpática. Mas não queriam saber do milho abundante dela não. Preferiam brigar a tapa por um grão qualquer de gergelim caído na calçada de um Mcdonalds próximo.
A velhinha, por mais que se esforçasse em agradar, ao não obter sucesso, entrou em crise. Um lado dela dizia para abrir uma franquia do Mcdonalds e o outro a mandava se vingar da corja ingrata. Ela sentou-se à mesa, pegou um papel e pôs-se a fazer as contas. Veneno de rato era muito mais barato.


 
Sara nasceu na baixada fluminense

Tinha vergonha disso. Quando começou sua adolescência, procurava uma alternativa pra se sentir melhor. Começou a se vestir de um jeito diferente. Os vizinhos e os pais não gostavam. Mas ela dizia: "É a última moda em Londres. Vocês não sabem de nada!" O pai era o que mais brigava: "Então vai se vestir assim em Londres. Não em Caxias!". A menina se empenhou nos estudos; passou para uma faculdade federal e fez comunicação. Queria morar no Rio. "Eu arranjo dinheiro, pai. Eu divido uma quitinete em Copacabana com os meus amigos" E foi isso que aconteceu.

A menina freqüentava todas a cena underground da cidade. Ficou conhecida na night. Montou uma banda. Desfez a banda. Fumou maconha. Cheirou coisas. Dormiu bêbada na calçada. Deu pra 3 meninos diferentes no fim de semana e se esqueceu do nome de dois. Falava alto. Comprava roupas em brechós. Entrava em boates de graça. Fez um blog. Bebia Red Bull. Lambia vaginas às vezes. Ria de quem gostava de Titanic e Britney Spears. Fez várias tatuagens. Inclusive uma nos seios, escrita: U Suck!

Chegou aos 30 anos sem namorado. Todos os seus amigos já tinham esquecido as guitarras, as bandas de brit-pop, os circuitos alternativos de cinema iraniano e arrumado um emprego. E Sara, nem namorado. Voltou pra Caxias. Trabalhou na padaria de seu tio. Todo mundo perguntava sobre a tatuagem que cobria todo o seu braço. Ela dizia: coisas de ex-clubber, babe! Se liga no bread!


 
Do Grajaú ao Leblon

Oswaldo se achava melhor que todo mundo. Em casa, respondia as perguntas da mãe e da tia com certos risos e deboches. Todos da família respeitavam o menino prodígio. O ego do garoto era do tamanho de sua inteligência. Tinha 24 anos e falava no telefone com os amigos, coisas que para o ouvido de sua mãe, eram latim. Dona Alzira não entendia nada, mas respeitava os telefonemas. Pagava as contas de 800 reais com orgulho.

Oswaldo era escritor precoce. Tinha três livros publicados e recebeu excelentes críticas. Morava no Grajaú com a mãe, a avó e a tia. Era o único homem da família. Seu pai tinha morrido na hora do parto. Isso mesmo. Ficou nervoso e teve uma parada cardíaca ao ver a mulher parir seu primeiro e único filho. Oswaldo carregava essa culpa nos ombros. Tinha que ser o melhor e mais honesto homem.

A família se muda para o Leblon. Oswaldo agora tinha uma grana boa. Seu livro tinha rodado países. Alugaram um apartamento de três quartos. Os telefonemas triplicaram! Mas não eram mais de amigos. Recebia ligações de editores, atores, Luana Piovani...

Só que Oswaldo estava mudado. Só ficava na internet. Não dava mais ouvidos para sua mãe. Entrava em casa de manhã, ficava no computador e de noite, saía novamente. Trazia homens e mulheres pra casa e ficava horas trancado no quarto. Seu último livro foi um fracasso. Não vendeu nada. Demorou mais de três anos para ser escrito e ainda recebeu resenhas debochadas. Sua mãe achava que o filho precisava de um descanso, de uma namorada. Decide comprar uma passagem para a Itália e ele decide aceitar.

Dois meses depois, Oswaldo volta de Roma pior ainda. Cabelo comprido. Barba pra fazer, olheiras e mau hálito. Tinha cansado dessa história toda de fama e sucesso. Queria voltar a ser o garoto metido de Grajaú com sonhos mirabolantes. Ia chegar em casa e propor para Dona Alzira voltar para o Grajaú. Sua mãe ao ouvir a idéia, exclamou:
- Vai você! Eu vou ficar aqui no Leblon.
- Como é que é?
- Eu não saio daqui, você tá maluco? Eu ando na praia e já to quase amiga da Paula Lavigne.

A campainha toca. Oswaldo abre a porta e dá de cara com Mauro Rasi, que trazia o chá da tarde pra tomar com as velhas da casa. Oswaldo pula do décimo andar.


 
Lúcia era perdida no mundo. Desde que seus pais se separaram num divórcio que até virou manchete de jornal, o clichê ambulante de pobre menina rica entrou em parafuso. Passou a usar drogas e parou de sair de casa. Ficava na frente do computador fumando, baixando MP3 e fazendo testes para colar os banners em seu blog.
- Eu preciso mudar. Isso aqui não é vida, eu sou um vegetal.
A empregada só concordava com a cabeça, enquanto passava o aspirador de pó na cama da garota.
- Lavar para quê? Essa porca vai encher de cinza de cigarro de novo - resmungava Alzira ao som de Sigur Ros - você precisa arranjar um namorado, menina! Fica conversando sozinha com esse cinzeiro e ouvindo essas músicas de padre... (Alzira desmunhecava a mão no ar e fazia um bico debochado).
- Ai Alzira, deixa de ser escrota. Fora do meu quarto ou eu conto pra minha mãe que você rouba filé do freezer e deixa carne de segunda no lugar.
Apesar de brigarem muito, havia uma cumplicidade entre as duas. Era Alzira que trazia do morro as drogas que Lúcia precisava para enfrentar a solidão. Em troca, a menina deixava a empregada usar o chat do UOL para descolar umas trepadas ocasionais. Lúcia invejava o jeito que Alzira lidava com a vida. Se estava meio caída, logo arranjava uma boa trepada e ficava novinha em folha. Encontrava a menina no corredor, dava de ombros e dizia:
- Viu? Aprende com quem sabe!

Lucia fazia que se irritava, mas concordava por dentro. Começou a freqüentar as mesmas salas de bate-papo da doméstica. Foi lá que conheceu Manoel, um português inteligente. Graças a ele, a vida passou a fazer sentido. O cara era um pai para ela. Enchia ela de presentes. Iam a praia todos os dias e corriam em torno da lagoa ao cair da tarde. Lucia nem tinha mais aquela cor branca esverdeada. Alzira nem precisava mais limpar o quarto e trazer as drogas do morro. Tanto que foi demitida. Magoada, chamou os poucos irmãos que ainda não estavam presos e mandou capar o português.
- Detesto me sentir usada. – disse ao repórter do RJTV enquanto era algemada.


 
Sueli estava desolada. Todas as suas amigas se deram bem no ano novo e ela ficou a ver navios. O pior era agüentar a gozação enquanto lanchavam no Bob´s da Avenida Atlântica:
- Tu é muito burra mesmo, Su!
- Todas nós pegamos vários gringos ricos show de bola e tu ficou bebendo água mineral no bar.
- É...água mineral...muito mané...
As amigas eram cruéis. Todas eram putas (no real sentido da palavra), bêbadas e felizes. E queriam impor o estilo de vida sobre a amiga, que se dizia muito contente sendo estoquista da Triton do Rio Sul e freqüentando a Sara Nossa Terra aos domingos.
- Garota, abre o olho. Homem é tudo filho-da-puta! Você tem que explorar eles ao máximo e depois dar um pé na bunda.
- Eu não concordo, gente. Acredito que exista alguém por aí que me ame e me respeite.
- Sonha, Sueli.
E Sueli sonhou. Tanto que conheceu Clayton. Era tudo o que ela queria. Carinhoso, ótimo papo e super romântico. Namoraram durante dois anos. O garoto consertava coisas da casa junto com o sogro, elogiava o bolo da Dona Rita e brincava com os labradores. O único defeito, segundo as amigas, era que ele não tinha grana nenhuma. Estudava jornalismo na Estácio e era estagiário. Vivia sem grana. Sueli bancava tudo pro garoto. Desde os big-macs até as noites nos motéis. Mas não se importava. Afinal, tinha arranjado um homem e um motivo para mostrar para as amigas que elas estavam erradas.
- Ah, gente. E além de tudo, ele tem pau grande! (dizia rindo, toda orgulhosa)
Tanto Sueli propagandeou sobre os dotes do namorado que as amigas resolveram conferir. Julia foi a primeira. E cobrou só a metade do preço. Afinal, ele era de casa.


 
Erika sempre reavaliava sua vida na véspera do ano novo. Pesava todos os seus sucessos e fracassos numa balança imaginária enquanto assistia ao Reveillon do Faustão.
Ficava olhando para a figura rotunda do apresentador e pensando no que havia de diferente entre os dois. Ambos eram gordos e mal-humorados. Faustão, contudo, era bem-sucedido.
Erika queria ser como ele. "Com dinheiro se consegue o que quer". Mas não era só dinheiro que lhe faltava. Queria também amor. Amor era a coisa mais importante do mundo. Sem ele, o mais rico dos homens não passava de um miserável. Pensava também na estupidez do apresentador ao se casar com uma mulher que o via como uma imensa e recheada carteira. "Fausto não é só uma máquina de fazer dinheiro. É um ser humano lindo e merece nosso respeito e carinho".

Achava que ele precisava de uma mulher como ela. Imaginou as mãos gordas do Faustão percorrendo suas coxas brancas em busca de seu sexo. Erika havia gozado no final da contagem regressiva do programa. Perdida em seus devaneios eróticos, não percebeu que estava se masturbando com uma garrafa de champanhe, que ficou entalada, intacta, em sua vagina.

No hospital, por mais que os enfermeiros puxassem, a garrafa não saía. Tiveram que bipar o médico plantonista. Doutor Jorge, também gordo (e mal-humorado por estar trabalhando durante a virada do ano), pegou um martelinho e com um toque no lugar certo, quebrou o fundo da garrafa liberando toda a pressão. Quando a espuma toda explodiu como um brinde atrasado, o médico não se conteve e gritou:
- Ô loco, meu!
Erika sorriu. Algo dentro de si, dizia que 2003 seria um grande ano.


 
- Eu queria tanta usar um vestido justinho branco nesse reveillon!
Mariana era magra, mas tinha barriga. Sua mãe, consciente, tentava evitar o vexame:
- Ah, minha filha. Usa aquela jaquetinha. Fica tão bem.
- Ah, mãe. Não fode!
Além de magra e barriguda, a garota também era mal-humorada. E teimosa. Saiu da loja com um vestido mais justo que Jesus. Quando saiu do provedor, as vendedoras se reuniram no canto para rir. Algumas apontaram, para que a gerente soubesse de quem se tratava.
- Parece uma laranja dentro de uma meia.
Mariana queria conquistar Fabrício a qualquer custo. O garoto era lindo, apesar de meio veado. Não tinha dinheiro, mas morava com a avó numa cobertura na Avenida Atlântica. Ela tinha que conquistá-lo de qualquer jeito. Aquele ano novo seria sua chance. Precisava estar linda, sedutora. Acima de tudo, precisava embebedá-lo. Mas como fazer? O garoto odiava bebida alcoólica.
Na noite de ano novo, a armadilha estava preparada. Mariana havia misturado vodka em todos os pratos da festa. Até a lentilha tinha vodka. Deu meia-noite e a garota empurrava bebida goela abaixo de todo mundo. Terminaram todos bêbados. Até Dona Carmela, a avó de Fabrício, que tinha mediunidade desenvolvida, acabou incorporando a Iemanjá.
Na manhã seguinte, o garoto acordou ao lado de Mariana. Os dois nus.
- Nossa, Mariana, que barriga enorme você tem!
- Nós transamos. Estou grávida, seu crápula.
Fabrício ficou apavorado. Ergueu-se e começou a pular sobre a barriga da garota, que acabou vomitando toda a lentilha.


 
Tudo na vida de Joan era opaco. Sua vida não tinha altos e baixos. Seu drama era não ter nenhum drama. Nada acontecia em sua vida pacata de classe média americana. O marido pagava as contas, a comia semanalmente e era um bom pai. Os filhos tiravam notas boas na escola e não se metiam em confusão.
- Eu não quero vocês usando drogas.
- Mas, mãe, a gente odeia drogas.
- Não interessa. Eu não quero e pronto.
- Mas mãe...
- Já para o quarto!
Depois dessas brigas sem sentidos, Joan se trancava no quarto e chorava. Depois de meia hora, levantava, ligava seu laptop e entrava na Internet. Ela tinha uma web cam e chorava pelada diante de seus interlocutores. Alguns se masturbavam ao vê-la se desmanchando em lágrimas. Depois de um certo tempo, ela percebeu que poderia ganhar dinheiro com isso. Passou a cobrar acesso para seu web site, batizado de cryingfatchick.com. Com o dinheiro veio também a culpa. Como ela, uma mãe de família exemplar, uma dona de casa perfeita e esposa amantíssima, conseguia se despir diante de desconhecidos para satisfazer suas mais estranhas perversões? Sentia-se uma puta barata e vulgar. Com o coração dolorido de tanta culpa, chorava ainda mais copiosamente. Agora Joan tinha um verdadeiro drama. E estava contente com isso.



 
O Natal de Janaina

"Todos nós precisamos de nosso espaço no mundo". Janaina conversava consigo mesma enquanto contemplava da janela da cobertura do Leme, a imensidão do Atlântico. "Eu sou tão pequena diante da grandeza desse mar. Não sei porque me deprimo. A natureza é sempre maior que nossos pequenos dilemas". Acendeu um Derby, deu uma profunda tragada e suspirou liberando pequenos círculos de fumaça azulada. "Quem sou eu nesta vida"?

- Você tá aí falando sozinha feito uma louca e deixou a porra do arroz queimar, Janaina.

O momento de contemplação oceânica fora interrompida por Liana, a filha adolescente da família Almeida Carvalho, para a qual a empregada trabalhava há mais de vinte anos:

- Calma, querida, eu faço outro. Tem horas que a gente precisa se encontrar no mundo.
- Se encontra no fogão, senão ninguém come hoje, ok?

Aquele era um natal especial. A família finalmente havia deixado a Ilha do Governador. Seu Almeida agora era vereador. Dona Rosa queria ostentar a nova fase econômica da família. Chamou para a ceia tios, vizinhos, políticos e parentes importantes do Leblon, que normalmente ignoravam os convites. A dona da casa dava os últimos retoques na decoração da casa e dos filhos, brigando para escolher a roupa adequada. Volta e meia ia até a cozinha para checar o trabalho de Janaina.

- O que tá havendo contigo, criatura? Está toda aérea hoje! Essa comida já era para estar pronta!
- São aqueles dias em que você tem uma sensação de despertencimento desse mundo.
- Sei, sei. (A patroa finge que presta atenção). Falando nisso, a cabeça do peru não pertence ao prato. Quer tirar essa coisa nojenta daqui?

Onze horas e as visitas começavam a chegar. Paulo saiu do quarto com a sua regata predileta mostrando os braços cheios de tatuagem. Recebeu o olhar reprovador da mãe, que havia separado uma camisa de botão. Janaina começou a servir. Já estavam todos sentados à mesa. Menos a filha caçula.

- Gente, onde esta Liana? Com licença, podem começar sem mim.

Dona Rosa abriu portas, banheiros e nada de Liana. Percebeu que ela poderia ter fugido de novo para a casa do namorado da ilha.

- Aquela praga sempre voltando praquele muquifo. Será que ela não percebe que nós não somos mais suburbanos?
- Sabe, dona Rosa, às vezes a busca pelas raízes, pelo passado é a chave para nosso futuro.
- Janaina, me faz dois favores? Um: cala a boca. Dois: vê se o carro está ainda na garagem.

E foi isso que Janaina fez. Passou pela portaria e encontrou Liana, com a calcinha arreada, arfando embaixo do porteiro.
- Liana, isso é hora para fazer isso? - Sexo era uma coisa que não fazia parte da vida da empregada desde que saíra, ainda adolescente, de Volta Redonda.
- Sai de cima dela! - Janaina puxou o porteiro pelas cuecas e levou a menina, que se vestiu enquanto o elevador subia.

O clima já estava pesado. Todos já tinham levantado da mesa. Janaina corre, arrastando a menina para o banheiro, para que ela acabe de se arrumar. Encontra Paulo, o filho do meio, comendo uma prima na pia:
- Paulo! (as duas gritam ao mesmo tempo)
- Porra, fecha a porta!

Janaina estava nervosa. Precisava de um cigarro, precisava ver o mar, sentia-se velha, sozinha. A família já não era a mesma. As crianças haviam crescido. Dona Rosa, antes uma amiga, agora a tratava com frieza. A empregada correu para a sacada. Passou pela sala como um raio. Desviou de cadeiras, mesas, mesinhas, peruas, engravatados, subiu as escadas tropeçando, atravessou o terraço, passou pela churrasqueira, pegou impulso e se jogou do vigésimo andar.

- Este momento parece uma eternidade. A morte não é um fim. É um novo começo.

Enquanto despencava em direção à morte, podia ouvir a voz desesperada de Liana gritando:

- Janaina, sua puta! Você não fez as rabanadas!!